Afeto (2021)

Foi em um livro de minha mãe que li pela primeira vez na vida textos de Clarice. Lembro disso com clareza porque em um deles ela disse que ‘Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões’. O amor cresce junto com o desdobramento da vida, solidificando-se com cada desilusão. Não existe expectativa e nem vontade que se sobreponha ao fato de que desapontar é a sina do ser amado. E sei disso porque sou filha.

Afeto foi uma série fotográfica realizada durante a pandemia, quando a vida doméstica se tornou o centro do cotidiano para muitas pessoas e a necessidade de isolamento social orientou inevitavelmente a atenção às dinâmicas relacionais cultivadas com as pessoas mais próximas a nós. A intimidade compulsória, devido a impossibilidade de desvio das dinâmicas familiares então exacerbadas pelo contexto de desespero e angústia coletivo, me reivindicou uma reflexão persistente acerca da complexidade do amor como escolha e processo cotidiano.

Realizada em filme 35mm contaminado por fungos, os autorretratos da série foram fotografados com a participação de meu pai e minha mãe, cujos braços e mãos interagem, acalentam e sustentam meu corpo. O ideal romântico também se faz presente na concepção do amor familiar como inerente, puro, infinito e que deveria ocorrer sem esforço. Ao não experienciar a família como o lugar primário de carinho e compreensão, a frustração e o ressentimento ocupam o lugar-comum.

Nas fotografias familiares tiradas por mim, encontro uma possível construção de sentido no afeto, tal como houve na prática uma construção trabalhosa da relação com meus pais na minha fase adulta. Ao amante é imprescindível suportar perder todas as outras ilusões, planos e expectativas para com o ser amado. Inventamos o amor em família aceitando que ele não é garantido, automático ou simples enquanto nos vemos afetados, atravessados e contaminados pelas complexidades uns dos outros.